quinta-feira, 8 de julho de 2010

Apure sua visão sobre as “Favelas” - 2ª Parte


A partir daí pouco a pouco a atenção se voltou para o novo espaço urbano social, criado em conseqüência, nos morros cariocas, a favela, território da pobreza e das “classes perigosas”.


Por influencia do celebre livro, Os Sertões, de Euclides da Cunha, um verdadeiro fenômeno cultural da época, a elite administrativa priorizou entender o morro da providencia. O livro entre outras coisas descreve e relata a ocupação do morro da favela pelos militares na cidadela de Canudos. Alguns militares ao voltar desta guerra, na esperança de receber o soldo se instalaram no morro da providencia que passou a ser denominado de morro da favela.


“Na visão dos primeiros observadores da favela do Rio de Janeiro, morar nesses locais também se apresentava como uma escolha, assim como ir para Canudos dependia da vontade individual de cada um. Os habitantes da favela são ligados a sua comunidade e não desejam deixá-la”. (Costallat, 1995)


Considerando alguns aspectos do processo, para entender a construção deste mito, podemos constatar que a ultima citação comenta sobre o começo da criação da dimensão do favelado. Indivíduos que como os ex-soldados descontentes, conspiram contra os interesses do estado e contra a ordem social.


Outros aspectos que não podem deixar de ser considerados e que surgiram no desenrolar deste processo são, as preocupações políticas de uma então jovem República, preocupada em se consolidar. A pretensão desta jovem República em construir uma sociedade evoluída e saudável, e principalmente a vontade de livrar-se das representações do que então era visto como ultrapassado, como de outra “época”.


“A favela pertence ao mundo antigo, bárbaro, do qual é preciso distanciar-se para alcançar a civilização”. Pensamento da época. (Licia Prado Valladares, 2008)


Então no inicio do século do século XX, a favela já passa a ser avaliada como grande problema, abrindo com isso grande debate na sociedade. Alguns atores sociais, com maior ênfase, médicos e urbanistas, tiveram na época enorme influencia nesta discussão, e contribuíram novamente, para uma análise do tema, simplesmente técnica e física, ignorando as verdadeiras causas sociais. Os “favelados” eram ignorados diante destes observadores sociais. Quem eram os moradores? O que eles faziam? Da onde eram? Aonde trabalhavam? Quantos anos tinham? E muitas outras perguntas não eram se quer, consideradas. O tema foi destituído de propriedade humana, o mito já estava criado. E outra campanha surgiu na oficialidade da cidade, agora contra as favelas ou usando um termo da época contra a “lepra da esthética”. A diferença entre a campanha contra os cortiços e essa contra as favelas era que essa agora vinha com a marca de um estado com pretensões modernas, o cinismo social, a capacidade de produzir engodos, finalmente nossa elite rural depois de mais ou menos 400 anos teria sido apresentada a Nicolau Maquiavel. Despejar milhares de famílias e construir apenas centenas de casas, forçando desta vez a grande maioria de desabrigados sem acesso a elas, a ocupar áreas na periferia.


Assim essa política antifavela se desenvolveu até o final da década de 20, quando o Brasil experimentou o que seria para muitos o seu principal rompimento histórico, a Revolução de 1930, que inicia a Era Vargas, decretando o fim da republica velha e inaugurando uma ditadura de viés nacionalista e populista, que encarava as classes trabalhadoras com interesse social.

Em 1931 Vargas nomeia o medico Pedro Ernesto como prefeito da cidade do Rio de Janeiro, sua ação populista se voltou para uma política de clientelismo dentro das comunidades, com indicações e recomendações para serviços sociais que dificilmente o pobre acessaria normalmente, junto com a construção principalmente de escolas e hospitais. A política de destruição fazia parte do passado, o reconhecimento da favela como espaço legitimo urbano, trouxe o ímpeto de melhorar e administrar as favelas e seus habitantes. Importante aqui lembrar que até a Era Vargas, a ajuda social aos pobres tinha caráter exclusivamente privado e religioso e era organizado em cima de praticas e instituições que remontavam o Brasil colonial.

Então com o objetivo de inserir dentro do controle estatal o contexto das favelas, com uma política de proteção, mais sobre tudo de controle dos pobres, veio à preocupação de conhecer cientificamente e estatisticamente esse espaço urbano e seus atores. O código de obras de 1937 passou a reconhecer oficialmente a favela como tipo de espaço urbano presente no território do distrito federal. E no inicio da década de 40 um censo completo foi realizado e os primeiros trabalhos de cunho social apareceram. Irrelevante julgar o caráter elitista desses trabalhos, o importante é que eles foram e são referencia até hoje.


Com isso se produziu outro tipo de conhecimento sobre as favelas, mas vale registrar que mesmo com avanços, os preconceitos se mantinham no discurso da população não pobre. E quando Vargas foi deposto por Washington Luís em 1945, e até o retorno dele em 1951 pelas eleições, houve uma forte retomada no discurso conservador elitista de extinção das favelas.


Neste período em que Vargas estava afastado um personagem importantíssimo se insurgiu contra esse forte movimento, Dom Helder Câmara. A igreja Católica foi a grande protagonista na defesa das classes pobres faveladas, criando a Fundação Leão XIII e o movimento cruzada de São Sebastião.


Com a volta de Vargas em 1951, o populismo estava de volta ainda mais forte que no seu primeiro período, com isso as favelas se expandiram descontroladamente.

No período ditatorial militar, houve tentativas de remoção das favelas, e com a volta da democracia nos anos 80 se iniciou a política de urbanização pelo BNH e pelas agencias de serviço público. Já nos anos de 1990 o movimento favela bairro consolida o movimento social para as favelas.


A reflexão em torno desse tema é que essa tendência a dualidade de conflitos, que o ser humano trás como marca psicológica. Atravessando de forma evolutiva dentro deste tema, aonde primeiro, o pretenso mundo urbano brasileiro conflitava com o mundo rural, em seguida a mentalidade civilizatória das elites influenciada pela Europa, conflitava com o atrasado, e por fim a simples resistência sobre o outro estranho a sua realidade, produziu erros atrás de erros ao lidar com os excluídos brasileiros e suas adaptações à sobrevivência.


O Estado nunca se preocupou como a massa de escravos libertos sobreviveria dentro da nação, pelo contrario se preocupou somente com a manutenção e o bom funcionamento dos grandes latifúndios. O estado e seus representantes da elite nunca se preocuparam, com a relação povo trabalho, e povo moradia. Ignoravam a modernidade e suas novas vertentes de representações e manutenção de poder, nunca se preocupou em defender os poucos que apostavam na indústria, pelo contrario, alienada, a classe consumidora sempre preferiu produtos importados. A lógica política mudava, a lógica econômica mudava, e importantes questionamentos sociais a respeito do individuo, do trabalhador já se faziam presente durante todo este processo no mundo, e a elite sempre ignorou.


Sempre fez vistas grossas, portanto as conseqüências estão bem a mostras, e não adianta simplificá-las com um discurso alienado, daqueles que não tem sua história na origem destas causas.


A pobreza é uma realidade e gera o absurdo como morar em áreas impensáveis, como comer coisas intragáveis. Mas a pobreza é HUMANA, não é uma coisa ou uma paisagem, e quem as produz somos nós, a favela não é outro mundo, é parte do nosso mundo que devemos melhorar, até que ela não precise mais existir.

Apure sua visão sobre as “Favelas” - 1ª Parte


Temos aqui um tema que esclarece como poucos, a questão da mentalidade dentro da sociedade brasileira.


Toda minha experiência de vida foi testemunha que na sua grande maioria, a mente solta e inserida nas camadas acima dos pobres, no conceito de classe pré-concebido. Reflete ou reverbera pré-conceitos e discursos segmentários, montados em épocas das quais elas não tem a menor idéia.


Como minha sociabilidade pode ser entendida na classe média, meus testemunhos se justificam.
Quando expresso “mente solta”, digo do individuo que é capaz de julgar a sociedade sem ela estudar. Quantas vezes o tema favela se faz presente dentro dos noticiários policiais, do seu tele jornal diário, dentro de conversas sobre violência, e como explicação de condição social.
Considerando quem mora ou freqüenta o Rio de Janeiro, “cidade maravilhosa”, quem ao menos não escutou ao passar diante de uma enorme favela? “Como seria perfeito se “isso” não estivesse aí”. Ou coisa parecida. “Como seria lindo se o Rio não tivesse favelas! E varias outras explanações neste sentido.


A favela é sem duvida, até os dias de hoje, um verdadeiro mito para toda a sociedade que se externa a ela.


É claramente perceptível à atenção dos mais leigos, como esse mito é encarado na contemporaneidade. A sociedade que se exclui, pinta a favela como uma habitação maior de uma praga maldita social, uma habitação matricial, geradora como uma rainha, de insetos sociais, aonde por sorte, algum pode ser salvo para o plano alienado da classe média. Sendo que a grande maioria é encarada como um lastro e uma ameaça para ao bom funcionamento do Estado.
E este por sua vez, tem contato com o “mito” através de obras eleitoreiras, assistencialismo barato e, sobretudo com a mão pesada do militarismo policial. Isolando e contendo os indivíduos que ousam explorar um viés alternativo de compreensão de mundo, e de cultura.


Percebe-se que enquanto uma parte da sociedade consegue ter uma rotina razoável de vida, outra fica espremida entre um plano violento de segurança estadual de tolerância zero, dirigido para aqueles que não tiveram o menor contato com o próprio estado. Tendo que achar normal uma verdadeira guerra de guerrilha com armamentos pesados nas ruas, nos espaços públicos do seu bairro e entre suas casas. Coisa impensável nos bairros de classe média a rica, mas, justificável nas ditas favelas.


E o que muda no entendimento, quando atravessamos essa circunstância com a ciência História? Sempre muda muita coisa. Continuamente a História nos revela e oferece a chance de se ver um mundo escondido pelo poder e pelas conveniências.


Então para começar a entender as favelas e toda a criação deste mito devemos voltar ao século XIX na cidade do Rio de Janeiro.


Quando enormes casarios de latifundiários em crise passaram a ser explorados como cortiços para a classe trabalhadora pobre que necessitava estar próximo da alternativa rara de trabalho, ou seja, no grande centro. Surgindo com isso uma adequação social impar e bem brasileira, aonde pobres e ricos dividiam os mesmos bairros na cidade.


Os cortiços eram definidos pelo regulamento municipal como: “construcção prohibida pela prefeitura. É uma habitação collectiva, geralmente constituída por pequenos quartos de madeira ou construcção ligeira, algumas vezes installados nos fundos de prédios e outras em pequenos pateo. Também se considera cortiço um prédio de construcção antiga onde clandestinamente são construídas divisões de madeira (construcção prohibida pela prefeitura), formando quartos ou cubículos, sem mobília, que muitas vezes se extendem aos sótãos, forros, porões, cozinhas, despencas banheiros, etc e habitados geralmente por indivíduos de classe pobre e com o nome de casa de alugar cômodos, sem direção...” Cf. Backheuser (1906:105-106)


Importante lembrar que neste período, uma considerável massa de trabalhadores, principalmente negros e imigrantes, disputava as poucas vagas de trabalho formal e informal que a cidade provia. Período ainda de um país latifundiário com muita oferta de mão de obra e uma fraca política industrial.


A pobreza urbana se acumulava e trazia preocupações para as elites de todo o mundo, isso, quando as ciências sociais ainda engatinhavam no meio acadêmico sendo apenas o germe do que viria ser, portanto ficando fora do processo de pensar a pobreza.


Profissionais da imprensa, literatos, engenheiros, médicos, advogados, entre outros, foram os primeiros a se prestar, a tentar entender a cena urbana e seus personagens pobres. No Rio de Janeiro a atenção se voltou para o foco das classes pobres, o cortiço. Como cita Licia Prado Valladares “Definido como um verdadeiro “inferno social”, o cortiço carioca era visto como ameaça a ordem social e moral. Percebido como espaço propagador da doença e do vício, era denunciado e condenado através do discurso médico e higienista, levando a adoção de medidas administrativas pelos governos da cidade”.


Após o entendimento de uma circunstancia capital dentro da sociedade, ser apreciada, discutida e interpretada pela perspectiva de profissionais, quando não apenas técnicos, sempre elitizados, a imagem totalmente negativa dos meios populares ganhava a oficialidade, estava declarada a “guerra” contra os cortiços. Através de leis e ações administrativas, os cortiços foram sendo destruídos e erradicados. Novamente o discurso civilizatório euro-centrista foi bem conveniente. O Estado Brasileiro que trazia ainda a hereditariedade de uma colônia de exploração, sustentada por uma elite na sua grande maioria ruralista, existia principalmente para o sustentáculo da mola mestra da maquina econômica. Pouco tinha noção das conseqüências, que ações radicais teriam, não encarando a modernidade, que já se fazia presente, pelo menos com suas mazelas.


Excluir habitações populares para uma grande reforma urbana “civilizatória” e não pensar em uma política de habitações para a massa despejada, não pensar o quanto a pobreza poderia pesar para um todo, mostrava a forma que os lideres encaminhavam o país diante de uma nova realidade de mundo, no final do século XIX.


Vários estudos hoje mostram uma ligação direta entre as demolições e incêndios dos cortiços do centro com o inicio das ocupações ilegais nos morros cariocas. A massa despejada dos cortiços ocupou os morros nas proximidades do centro da cidade, já que o subúrbio ainda rural, desprovido de transporte e longe dos empregos era inviável à sobrevivência.


Continua...